Meu pai tinha acabado de morrer. A empresa onde eu trabalhava há três anos anunciou que ia fechar as portas. Minhas amizades de anos, ruindo.
Esse foi o prefácio das minhas férias no ano passado. Tudo marcado, agendado e parcialmente pago à vista e parcelado. Lembro que chamei o Uber na madrugada de uma terça-feira de outubro e no caminho pela marginal Tietê deserta, senti um nó no estômago pensando se eu deveria ou não fazer aquela viagem em um clima tão instável. Eu não sabia na hora, mas aquela viagem mudaria minha vida.
Eu fui. E parte de mim, não voltou mais.
Dias depois de chegar no deserto do Atacama, o país sofreu um abalo sísmico-social. Por toda a parte, chilenos pareciam ter despertado de uma espécie de coma induzido. Eu sabia muito pouco da história chilena. Meu conhecimento buletizado de eventos políticos se restringia a uma das piores ditaduras da América do Sul e ao um enganoso ideal de superação política. Um oásis em meio ao subdesenvolvimento, lembro de ter lido.
Cheguei em Santiago em meio a cheiro de gás lacrimogêneo, borracha queimada e comida colombiana. E foi ali, no meio desse caos, que sentei em um restaurante na praça principal, com tocadores de tambor, pombos e vendedores ambulantes que, entre um canecão de chope e água com gás, eu me transformei. Não foi coincidência que ali, entre tanques de guerra, bombas e paneladas, também determinei quais caixas eu levaria na minha mudança e quais quinquilharias eu deixaria para trás.
E apesar do clima, a única sensação que eu conseguia experimentar era a de paz.
O exercício de se conhecer é um dos mais difíceis. Assumir que não somos bons o suficiente (para quem, né?), assumir nossas falhas, nosso jeito de afetar o mundo e as pessoas. Mas, principalmente, assumir as nossas violências. Violência sentido da topologia da violência com uma manifestação microfísica. E a linguagem é um dos maiores caminhos da violência. Por isso, temos tanto medo de nomear as coisas. Se não tem nome, não existe.
Um amigo na faculdade se referia a uma conhecida como tendo uma “voz de pêssego”. Sabe? Aquela voz aveludada, gentil, que esconde o caroço deformado e duro por dentro. Sempre lembro dessa expressão e ouço ressabiado as tais vozes de pêssego.
Em uma manifestação social, a linguagem autoritária não é aquela apenas da ordem. Do imperativo. Mas é aquela que não aceita, que rejeita e que destrata, mesmo no virtual, o outro e seus afetos. É o conhecido “falar mal”.
Olhar para essa arqueologia, nos faz entender que a obstinação humana foi o que levou Freud a admitir a existência do impulso para a morte como um gerador de impulsos destrutivos que vão circulando até serem descarregados em um objeto.
É no outro que descarrego meu impulso:
Eu sou feio, mas é o outro que não atende aos padrões eurocentrados de beleza. Estou solteiro, mas é porque os outros é que são desinteressantes. Eu não tenho dinheiro, mas é o outro que está gastando demais. E por ai vai um longo caminho de construção autoritária e violenta.
O pensamento mágico é constante.
Em agosto de 1578, morre em Portugal o rei Dom Sebastião. Solteiro e sem filhos, deixou um espaço vazio de legado que gerou um sentimento eterno nos portugueses que passaram a esperar por um novo rei que iria restaurar a glória portuguesa. Fácil de encontrar na literatura e na poesia, esse sentimento, chamado de sebastianismo é algo bastante curioso. Ele se traduz nesse contexto de pensamento mágico. Para se ter uma ideia do poder do sebastianismo, essa ideia aparece nos registros da guerra de canudos em 1897 com Antonio Conselheiro prometendo a volta do rei Dom Sebastião aos seus seguidores.
É parte da nossa cultura o sebastianismo. Anda de mãos dadas com o pensamento mágico. E nos afeta como pessoas e como construção de identidade nacional: o Brasil está mal, quem vai nos salvar? Tancredo Neves! O Brasil vai ser salvo por um homem correto, jovem e firme, que vai varrer a velha política: Fernando Collor de Mello. O Brasil está economicamente prestes à falir, quem vai arrumar a economia? Fernando Henrique Cardoso. Não, o que o Brasil precisa é ser salvo por um homem do povo: Lula. Não, o Brasil vai ser salvo por alguém que coloque o país acima de tudo: Bolsonaro.
A esperança no sebastianismo está quase como um DNA nosso. Estamos sempre a espera de um milagre que vai nos salvar de nós mesmos. Nesse sentimento, o ruim é outro, o errado é o outro. O “Eu” se torna um coadjuvante frente a linguagem violenta, passivo, condolente e livre de obrigações. Não será uma recomendação de entidades e profissionais de saúde que vai nos livrar de uma pandemia: será um milagre, vindos dos céus, pelas mãos de anjos que vai nos salvar.
E na falta da resposta a esse protagonismo, ficamos em silêncio. Já reparou como existe uma máxima nas aulas de história de que o Brasil nunca passou por uma guerra? Temos revoltas populares, levantes, manifestações, mas nunca guerras. Um silêncio que rege as violências.
Para se ter uma ideia, a palavra feminicídio só entrou no nosso vocabulário em 2015.
Enquanto estava sentado naquela praça, entendi que meu mundo era sempre o mundo do outro. Eu era violento, mas era o outro que me provocava expressões violentas. Atitudes, discursos, verdades violentas estavam sempre de mãos dadas comigo. Quando não as pessoas, o problema era o Brasil. O Brasil era violento e autoritário. E de fato, é, como provou a historiadora Lilia Schwarcz. Mas difícil foi entender que, na verdade, eu era o reflexo desse país. Um filho da pátria que absorveu essas características. O retrato do Brasil.
Romper padrões, romper com o pensamento mágico e com a forma como ele constrói mundos e realidades, é mais difícil do que se imagina. É um exercício diário. A sensação é que sobrevivi a mim mesmo. As coisas precisam ter nomes. A gente precisa encontrar formas de quebrar as violências. Todos os dias, o tempo todo.
E como o pensamento mágico é autorreferencial, fugir dele é um exercício solitário. E silencioso.
Agora, uma ideia que está zumbindo no meu ouvido: somos um país de silêncios. Mas deve ser justamente por isso que somos tão barulhentos.
Por Vitor Richner